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quarta-feira, julho 14

Velhos tempos, tempos modernos...

Pai, Mãe, preciso falar-vos. O tom solene surpreendeu-os. Acho que já tenho idade e "necessidade" de uma mesada ou semanada.Tinha dezassete anos,estava já no sexto ano, décimo primeiro como dizem agora.
Entreolharam-se e perscrutei naquela momento uma certa anuência. Não me disseram de imediato que sim mas convidaram-me a esperar pelo fim do mês. Chegado, o meu pai convidou-me a acompanhá-lo ao acto de recebimento do salário. Assinava uma folha e pagavam-lhe ao balcão em dinheiro.A minha mãe também recebera por esses dias.
Em assembleia senti-me importante ao sentar-me à mesa da sala com eles. Um envelope da minha mãe, um outro com o dinheiro do meu pai! Tanto, pensava ao colocá-lo misturado em cima da mesa...
Vai buscar um papel e lápis, ajuda-nos aqui. Fui, e comecei a anotar. Renda, água, luz, telefone,mercearia, etc, etc.
Mas olhem lá, estas contas já passaram a quantidade de dinheiro que está em cima da mesa!
Pois, vais ao Sr. Pereira, levas o role e diz que os pais pedem para ficar cem escudos por pagar para o mês que vem. Fui e vi-o fazer as operações para que o mês seguinte começasse logo à partida com cem escudos. No role pequeno tipo caderneta que transportávamos sempre que adquiríamos algo e num livro grosso, estreito com múltiplas folhas encabeçadas por nomes, um deles o do meu pai.
Ao regressar a casa, não me lembro se continuamos à mesa. Sei é que nunca mais falei em mesada ou semanada.Passei a estar imensamente feliz com o dinheirito que os meus familiares me davam ou eventualmente uns tostões que dos meus pais em momento de menos aperto ganhava.
Continuei a estudar latim à mesa do café com o meu amigo Martins. Uns dias bebia a "chinesa" outros bebia eu. O importante era fazer uma despesa que nos permitisse ocupar a mesa...
Aprendi a gerir o que tinha. O que não meu, não existia.
Os meus pais não eram detentores de curso algum!
E que lição recebi, que sabedoria tinham eles.
Na qualidade de pai procurei passar a mensagem. Estou satisfeito, entenderam, assumiram-na, os meus filhos.

terça-feira, junho 22

Registo

Creio que tinha cerca de um ano quando o meu pai emigrou. À época a Venezuela, Curaçau e África do Sul, na Madeira, eram os destinos mais correntes.
A minha mãe, aparentemente uma mulher frágil, tomou a família aos ombros. Quatro filhos! Era professora e até à minha instrução primária lembro-me de vários ambientes, paisagens, pessoas. Creio que esteve um ano em cada escola! As escolas eram por vezes em sítios recônditos, junto a povoações por detrás do sol posto. A iliteracia era enorme. Os campos absorviam a mão de obra das crianças em idade escolar, coisa naturalmente assumida. Mas quem aprendia a ler e escrever, aprendia. Havia exames e aferições de conhecimento para atribuição de diplomas escolares, expoente máximo em cerimónias inesquecíveis de viagens às sedes de concelho para prestação de provas, deslocação em táxis apelidados de "abelhas" batas impecavelmente brancas, caneta de tinta permanente, lápis borracha e mata borrão!
Durante anos habituei-me. Novas limitações, os quartos de recurso, as casas de banho ou à inexistência delas...
Anos e anos, o meu espaço infantil estendia-se entre as sala de aulas onde a minha mãe ensinava, os terreiros e os caminhos, as casas das vizinhas onde saciava a minha gula em bolos e petiscos que hoje não encontro sabores.
Nas salas de aula, por onde a minha mãe andasse, uma foto, ou duas, obrigatoriamente.
Na minha santa ingenuidade convenci-me que só alguém importante para a minha mãe a acompanhava em todos os sítios por onde andasse. E esse seria o meu pai...
O fardado com faixa atravessada ao peito não era, pois ele não era tropa. Tinha que ser o outro, o civil...
Nunca manifestei à minha mãe nem a ninguém essa minha dedução.
Passados anos, rimo-nos a bom rir. Salazar não era em definitivo o meu pai!

terça-feira, maio 11

album (parte onze)

Aproximava-se o mês de férias. Passagem marcada, as noites tornavam-se longas os dias intermináveis.

Um ano hostil, um ano intensamente vivido que nem de completa adaptação conseguida. Perdera-se o estatuto de “periquito” mas não tempo suficiente para “velhinho” . Dizia-se a propósito que só no fim de uma comissão estávamos prontos para ela...

Este tempo de meia comissão era perigoso. Iniciava-se o abrandamento da vigilância, por vezes a cautela, os procedimentos motivados pelo impacto do desconhecido. Cometiam-se exageros como se o tempo decorrido proporcionasse uma maior defesa, a chamada experiência, uma potencial loucura em gestação...

Abriam-se as defesas, o início da saturação.

Alguns acidentes poderiam ser evitados...

De novo sentado no paiol das munições, uma vista ampla a toda a negritude, uma vastidão.

Preparado para fazer fogo, a equipa e o obus. Falava-se baixo, ouvia-se com os olhos...

Recordava os meus benditos primeiros sinais de paludismo, precisamente ali, naquela posição.

Olhava os buracos nas flechas do obus e sentia-me protegido pela sorte ou outra qualquer entidade.

Há sinais? Se calhar há. Não fora sentir-me indisposto subitamente e sair do meu posto e hoje o passado não seria narrado na primeira pessoa. E ali estavam a testemunhar o episódio, os buracos, os estilhaços no interior. Se é possível entender, se é possível uma relação de entre uma máquina fria e estúpida, creio que fiquei ligado àqueles “ferimentos” no aço. Não imaginaria que por diversas vezes transitaria de aquartelamento levando sempre o meu “companheiro”, transportando com ele a lembrança da “sorte” que um dia tive!

Dessa vez a minha equipa ainda ficara coesa, ainda era a mesma. As pessoas e a máquina!

Há muito que a minha “coragem” me obrigara a dormir no abrigo, mesmo ali ao lado do obus. Preferia a ter que percorrer a tabanca, quatro da manhã, negro negro, Walter na mão, bala na câmara, hoje nem sei bem para quê...

Foi nessa altura que dei atenção a alguém que me transmitiu, mais vale um cobarde vivo que um herói morto!!!

Depois, deixar a cama à pressa e correr quase debaixo de fogo, uma só vez me chegara. A mim e ao Conceição, meu companheiro de armas. Eu ainda enfiei as botas, calções, tronco nu. Ele, depois de um festim muito barulhento e medonho, contemplava em dor os pés em sangue, a adrenalina calçara-lhe palmilhas invisíveis, anestesiara-lhe cada vidro cravado, cada esfoladela. A guerra tem disso mesmo ao mais sensato e equilibrado.

Depois dessa experiência resolvi abdicar do post jantar batendo umas cartas, um convívio esporádico. A minha coragem convidava-me para a segurança se isso se pode chamar àqueles abrigos feitos de troncos de palmeira e terra, chapas de zinco. Mas sempre era melhor que a pobre chapa de zinco como tecto!

segunda-feira, outubro 12

album (parte dez)

Estávamos em Janeiro, o ano de 73 começara.

O Natal passara-se sem afectos, cruel. A memória invadia-me em “flash”, os rostos, os sorrisos, os momentos distantes. Uma revolta imensa tomava posse da mente, do corpo. O álcool, sempre o álcool, a muleta! Nem embriagado nem sóbrio. Meio estado, perigosamente consciente.

As noites eram sempre iguais. Prevenção, mosquitos, horas à espera que algo acontecesse ou melhor, desejo que não acontecesse.

Ouvia-se o silêncio, sentia-se a noite.

Entre um bocejar e outro, uma troca de palavras em fula, algo para mim imperceptível. Desistira de perceber. O crioulo já me dava demasiado trabalho...

Um rádio ao ombro de um dos meus homens, emitia música africana...

De repente um grito, e outro e outro, pulos de contentamento como se um golo da equipa preferida fosse noticiado...

Despertei do meu estado ausente, questionei. Amílcar Cabral morreu, foi assassinado! E saltavam e riam, davam largas ao seu contentamento.Senti frio. Desperto, não consegui evitar o berro. CALEM-SE!

Na sua simplicidade a conclusão fora imediata. Se morrera, a guerra acabara!

Por momentos, elevando a voz, esgrimi os meus argumentos. Vocês são parvos? Não vêem que a guerra não é feita por um só homem? Como podem sentir-se felizes pela morte de um líder que acredita na libertação do povo que vocês fazem parte? Calaram-se mas não fiquei convencido de terem compreendido, aliás penso que não me perceberam.

Uma súbita vontade de vomitar, o desejo de mais um golo de qualquer coisa, desde que me ajudasse a sair dali!


quinta-feira, novembro 27

album (parte nove)


Aquela ideia que germinava na minha cabeça, o querer ser útil, fazer qualquer coisa para além da minha actividade bélica, encontrava cada vez mais terreno fértil.
Tinha o motivo, tinha a matéria prima, faltava-me a iniciativa. E tomei-a. Reunido com os meus soldados africanos, propus-lhes uma infiltração (palavra em voga em termos militares) pelos campos das letras e números. Chegámos a um consenso embora com muita incredulidade. E passámos à acção! Não se pretendia certificações, orientávamos pelo gozo do exercício do desafio e aquisição de novas descobertas.
Envolvi quem me poderia facultar livros escolares e tomamos uma sala anexa à “radio Tite”, um altifalante colocado no alto difundindo as escolhas musicais de um outro voluntário ou inconformado de sua condição de beligerante à força.
E iniciámos a caminhada. Entusiasmados, de um lado quem queria poder saber ler, do outro quem se julgava ser capaz de lhes proporcionar esse conhecimento. Mas não só, havia algo mais em mim de interesse, uma busca de fuga, um consumir de minutos, horas, um contrariar a condição de militar.
Apesar de todos estarmos de prevenção madrugada dentro, às nove horas assumíamos o compromisso da presença.
De início foram só os meus soldados africanos. Depois, um ou outro elemento da população, jovens que, assumindo a sua condição, ousavam querer ir mais além. Turma cheia, olhos vivos, brilhantes, ouvidos sôfregos, manuseamentos de lápis em gesto tosco em mãos hábeis em objectos bélicos. Dos encontros surgiam seduções, pequenas conquistas, sorrisos por vezes gargalhadas de cumplicidade, manifestações despreocupadas de prazer.
Não esqueço, e se isso fosse possível, ainda possuo os aerogramas que me foram escritos pelo Pedro, Joãozinho, Adulai e outros.
Letras! Mais desenhadas que outras, de tamanhos diferentes e de diferentes dificuldades de escrita. Mas letras, carregadinhas de sentimentos, de imagem, somente transmitidas até aí pela voz!
Sempre que evoco este episódio, recordo o quão difícil foi explicar, perante uma imagem do livro, o que era e como funcionava uma televisão. Eh, Eh, ecoavam em sorrisos incrédulos. A voz, tal como a rádio...vá lá, mas a imagem? Eh, Eh! Disse que sim, e pronto, não tinha nem argumento nem meio para mais!
Mas nem isso era importante, verdade ,verdadinha é que descobrira uma forma de me reencontrar, adquirir asas e soltar-me para além da “bolanha”!
Este contacto permitia-me estar mais com as pessoas, com suas aspirações, seus sonhos. E havia, estivesse eu atento. Aprendi, troquei.Hoje caminho felizmente em terrenos bem diferentes mas carrego a história de mim mesmo. E sorrio, em paz!

terça-feira, agosto 5

album (parte oito)

O silêncio e a noite foram tomando todo o aquartelamento e povoação. Acenderam-se as luzes, umas electricas de gerador outras a petróleo. Nos focos ao longo do arame farpado, insectos vários, borboletas e mosquitos hipnotizados em movimentos desgovernados.
Mais uma noite de prevenção normal não fossse a tensão acumulada dia após dia naquelas últimas semanas. O Nino fora visto na zona, rumor discretamente passado por informadores anónimos, conhecidos ou familiares, dignos de alguma credibilidade.

Respirava-se fundo, de alívio aquando do regresso dos militares em saídas pelo mato, sem incidentes...Depois vinham as noites!

Cada Obús estava apontado para determinadas zonas definidas pelos estrategos da defesa em consonância com o oficial de operações.

Sentado no paiol, nas flechas do obús ou em pé, olhava o negro do firmamento descobrindo estrelas, criando desejos de evasão. Conversas de circunstância, Rádio Conakri ao ombro de um soldado, ouvidos quase colados. No horizonte negro sem limites,os olhos procuravam descobrir, não o desejando nunca, um alaranjado de disparo, ouvidos captando eventual estampido. E o tempo passava, demasiado arrastado!

Subitamente, um sonoro “jacto” passando sobre as nossas cabeças. Um projéctil. Aprendi que quando os ouvia, caíam longe, para além. Olhos atentos, um alaranjado no escuro. Não passou! Um rebentamento curto. Dois, somente dois tiros. A alvo seria corrigido por informadores, segundo me disseram. E assim foi, poucos dias depois.
Entretanto, e como hábito, mal se tinha sentido o primeiro projectil agressivo, fez-se fogo de obús.

Depois, depois só vivido!
Do nada, de entre as tabancas, disparados por milicias, balas tracejantes sulcavam o negro do céu, disparam-se morteiros 80 e 60, cantaram as HK, as G3 nas valas, nos abrigos.

Quando o silêncio caíu, a noite cobriu-se de névoa de pólvora, um acre adocicado sabor na garganta... Dez minutos talvez nem tanto numa luta sem tréguas com um inimigo invisível, inexistente!

Porquê tanta confusão? Contra quem se disparara? No momento construiram-se histórias corroborando as fantasias dos outros, com a mesma convicção.

Que se pretendera afugentar? O medo, simplesmente o medo, o pânico. Esta exorcização custou milhares de balas, dezenas de granadas. A Bissau chegaram os relatos. Havia que justificar o gasto de tanto material -Tite sofrera uma tentativa de de assalto, vulgo “golpe de mão”!!!

O ataque de pânico nunca constou em relatos!

terça-feira, abril 15

album (parte sete)

Mamadu Seidi era um Homem Grande em Tite. Não que fosse corpulento. Ser Homem Grande era ser considerado, respeitado, um estatuto de venerável.

A sua idade, nunca soube ao certo, mas deveria andar entre os sessenta e os setenta.

A sua tabanca era passagem obrigatória no caminho de um dos obuses onde fazia prevenção nocturna, a sua companhia, obrigatória.

Varias foram as noites no seu alpendre, oferecendo-me um banco tosco, uma amena cavaqueira. Da guerra, das suas experiências, da vida e sua concepção. Respeitava-me, devolvia-lhe esse sentimento. Noites quentes, escuras, palavras pausadas, silêncios profundos de entendimento e partilha, sons cientificamente identificados de bicho ou geograficamente situados se de rebentamentos longínquos.

Anos atrás, Mamadu era guia das tropas portuguesas, pisara uma mina, ficara sem o pé. Como era um homem considerado pelas forças portuguesas, foi evacuado para Bissau e posteriormente para Lisboa. Fez a recuperação no Alcoitão.

A sua narração do contacto com Lisboa era de uma simplicidade e autenticidade enorme, um deslumbramento! Recordo a descrição dos prédios, “tabanca sobre tabanca”, e os carros, as pessoas, o ritmo da capital. Nunca esquecera!

Apesar de incapacitado, apesar de recordar o sofrimento, não transmitia amargura. Tranquilidade, isso sim.

À luz difusa de um candeeiro a petróleo, exibia com orgulho o cartão da União Nacional e as listas de contactos de Generais e altas patentes militares. Alguns tinham sido seus cicerones em Lisboa.Olhava, respeitava! A minha opinião...guardava-a para mim!

Mamadu tinha dois filhos, ambos militares do meu pelotão de artilharia. Mamadu, quarentão, e Abdul, ligeiramente mais novo. Dois filhos de duas mulheres em comunhão de espaço e afecto.

Com orgulho e ternura, falava-me dos dois filhos. Sim, porque isto de afectos e sofrimentos,mesmo em outras cultura, não há fronteiras.

Apreendi uma filosofia de vida muçulmana, simples, exigente, aprendi humildemente a respeitar, devolvi o respeito!



sexta-feira, dezembro 14

album (parte seis)

Quando cheguei, o Faustino avisara-me que normalmente uma semana após o pagamento do vencimento aos soldados Guineenses, eles pediam-lhe dinheiro. Diziam ter gasto todo.
Os soldados eram na maioria “profissionais” da guerra. Vinte e muitos, trinta e até quarenta anos. Era sem dúvida uma promoção socio-económica ser-se militar do exército Português e sendo de Artilharia permitia-lhes ter a família por perto.
Mudam-se os tempos…
Hoje procuram-se igualmente proventos através da guerra. Não vão os militares portugueses para a Bósnia, Afeganistão, etc., etc? Não são voluntários? Que os move? Curriculum? Dinheiro, muito dinheiro, um sintoma da nossa crise social!
Uma semana antes de receber o dinheiro dos ordenados vindo de Bissau, reuni o pelotão.
Disse-lhes que também recebia parte do meu vencimento ali, e que não queria continuar com o sistema de empréstimo. Propus-lhes que dividissem o que recebiam por mês por quatro semanas, e que poderiam dar-me a guardar se achavam ter dificuldade em o gerir.
Alguns aceitaram de imediato, outros, mais desconfiados só um ou dois meses depois. Ali transformava-me mais que num “banqueiro”, um orientador de economia doméstica. Senti-me honrado com a confiança deles, senti-me grato quando ao fim do mês alguns me pediam para guardar algum dinheiro que sobrava. E havia duas folhas, uma na minha posse, outra na deles. Era com orgulho que apresentavam o papel para acrescentar sempre que poupavam. No papel os cifrões, nos olhos um brilho especial, quase pueril. Nem se apercebiam o quão feliz me sentia em os ajudar a Crescer, acompanhando-os.
Descobria que mesmo em guerra, mesmo em condições adversas poderia exercitar o Ser.
Quando deixei estes homens, todos tinham as suas poupanças, uns mais que outros, mas todos aprenderam ser possível!
Sentia que não era militar, estava militar!
E muito trabalho havia para fazer. O terreno era fértil!
E há quantos anos estávamos em África? Quinhentos?
Muita aculturação, muita europeização, muita ausência de respeito pelo Homem e Culturas. Ora se impõe, ora se puxa, ora se empurra, poucas caminhadas a par.
Ter a maioria de africanos no meu pelotão, privar diariamente com as suas alegrias e tristezas, ensinou-me também a crescer, cimentando a formação trazida de casa, aprendida com o testemunho dos meus pais e felizmente continuada nos bancos de escola.
E se para além de agente da guerra deixasse uma assinatura do civil que teimosamente fervilhava, germinava inquietude dentro de mim?
Seduzia-me a ideia…
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quarta-feira, dezembro 5

album (parte cinco)

Tite era como mais tarde vim a constatar uma zona estratégica avançada de defesa de Bissau. Se Tite “embrulhava” como vulgarmente era dito quando atacada com peças de artilharia e morteiros, Bissau não ficava indiferente, ouvia-se.
A disposição dos pelotões de artilharia em toda a Guiné pretendia cobrir todo o território, num fogo cruzado, uma malha em que a maior parte dos aquartelamentos estariam integrados. Em Tite, os 105, com carga máxima atirariam granadas a uma distância de sensivelmente 11 km. Outros, 140mm ou 114 estavam espalhados pelo território, levavam a morte mais além. Por vezes as estratégias dos senhores da guerra rodavam os pelotões de Artilharia consoante as necessidades de cobertura ou intensidade de acções de ataque do PAIGC (nessa altura ainda era o partido comum para independência da Guiné e Cabo Verde). A verdade é que a manta por vezes era curta. Puxava-se de um lado para cobrir áreas, destapava-se do outro lado.
Batiam-se zonas, não alvos. Durante algum tempo esta não visão dos estragos que se fazia à distância serviu de blindagem à intranquilidade da minha consciência. Olhos que não vêem, coração não sente, diz-se. Neste caso, e comigo, não foi bem assim, não foi!

Havia uma capela católica, apostólica romana, onde o capelão se esforçava por não perder os hábitos de celebração e pregava a palavra do Senhor aos militares e também à população!
Segundo ele, fizeram-se algumas salvações de almas, baptizaram-se crianças e adolescentes. Mal? Essa “guerra” seria bem menos prejudicial do que a que as populações estavam sujeitas.
Também havia um espaço de culto muçulmano. No princípio, um estranho “linguajar” ouvia-se do alto da torre improvisada, às horas de culto. Depois deixou de se estranhar, pertencia a uma realidade de coexistência.(Obs. Não tenho conhecimento que algum militar europeu se tivesse convertido, enquanto lá permaneci!)

O posto administrativo era sem dúvida o único edifício digno desse nome. O administrador era cabo-verdiano. Depois da minha experiência com a população Guineense, penso que a escolha era politicamente estratégica: dividir para reinar!
Ao sair da porta de armas, o único estabelecimento de filosofia centro comercial da actualidade. Bugigangas, tecidos, sabões, açúcar, bebidas etc. Ao lado um “restaurante”,
De diferente, a compra de arroz e “mancarra” (amendoim) aos produtores.
Lembro-me venderem toda a produção para pouco tempo depois comprarem muito mais caro para sua subsistência. Lembro-me ter visto vender açúcar, não aos gramas mas às colheres de sopa rasa, 1 peso, o equivalente a 1 escudo.
Exploração? Não, observação tendenciosa da minha parte certamente!
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domingo, novembro 25

album (parte quatro)

Diziam que uma comissão de serviço só estava pronta para começar quando se estava no fim. Na verdade toda a preparação trazida da recruta e especialidade manifestava-se completamente desajustada. Aliás toda a Guerra é indutora de desajustes.

Estabelecido o primeiro contacto com aqueles que em princípio seriam meus companheiros directos por dois anos, encetei uma vida “social” desenvolvida na integração no seio militar europeu, o Batalhão de velhinhos.
Nomes? Não. Sobrenomes decididamente, algumas alcunhas ou até aqueles que assumiam o nome das suas terras de origem (o Fafe, o Elvas, etc.).
Talvez ancestral, estes métodos de aproximação, de inicio de relacionamento. Ou se fala de doenças, no caso presente de aventuras, ou e este nunca falhava, bebiam-se uns copos.
Um almoço abundantemente regado com um vinho tinto “marca branca” gentilmente transportado em bidões de 200 litros e de proveniência duvidosa, preparava a cerimónia de “aceitação”. Umas garrafas de Whisky como digestivo, conversas circunstanciais, um empurrar de copo após copo, como se não mais houvesse dia de amanhã. A praxe, uma outra. Fui aceite, consegui manter-me menos bêbado que alguns!
Prolongou-se. Foi um fim de dia em que rasgos de consciência me castigaram, por me sentir descontrolado, incapaz de, caso fosse preciso não dispor de todas as minhas capacidades.
Irresponsável, gritava-me! Creio que não há mais severo que o nosso próprio grito.
Tomei uma decisão. Não me embebedaria em horas de “serviço”. E o meu serviço acabava às quatro horas da manhã, começava ao escurecer.
Talvez uma semana depois de chegar a Tite, ainda procurava referências, identificações, pessoas, lugares, percebi a diferença de quem chega, o meu caso que quer compreender para agir, e aqueles que já “rodados” agiam mecanicamente porque não precisavam compreender.
Nessa noite cerca das três da manhã uma trovoada fenomenalmente sonora estourou mesmo em cima do frágil telhado. Ergui-me na cama, assustado aguardando não sei quê. Com ajuda de mais um flash seguido de trovão, olhei as outras camas iluminadas. Desertas!
Porta aberta, todo o pessoal num ápice se erguera e correra rumo ao abrigo!
Afinal fora uma trovoada, e se não fosse, disseram-me assim que regressaram…é pá, parecia uma canhoada…era mesmo como um RPG a rebentar… não podes esperar para ver…deixa estar que vais aprender…estes periquitos, rematavam com desdém!
Senti-me mal, diminuído, incapaz, triste. Era evidente…, porque não corri para o abrigo?
Afinal que linguagens eram aquelas?
Ai Lisboa, Lisboa!

domingo, novembro 18

album (parte três)

A LDG atracava a um cais apoiado em troncos, rio dentro. Em terra olhos curiosos, alguns de naturais outros de militares perscrutando as novidades, avaliando a mercadoria nova. Desembarcavam-se pessoas, produtos, víveres e bebidas, muitas bebidas. Ali, também quase despejado, aguardava que alguém me recolhesse!
E aconteceu. Poucos quilómetros percorridos por boa estrada ladeada de bolanhas, verde insinuante aquático, arroz, disseram-me. Mais ao longe mas bem visível, um aglomerado de “casas”, tabancas, dizem-me e até o nome da aldeia, que não fixo. Em tempos esta região fora considerada o celeiro da Guiné.

O Batalhão de Tite estava a acabar a comissão. Gente dura, experiente no dizer dos próprios. Percurso feito num Jeep, eu mudo de espanto e expectante, convenientemente atento às rajadas de perguntas e histórias dos meus anfitriões de ocasião. E, de onde és…viste crocodilos no Geba…quanto tempo tens de tropa…a malta isto…a malta aquilo, vais ver…toma cuidado…um dia…conheces o…?
Nem tinha tempo de falar…E seria mesmo necessário? Afinal o importante ali era a evocação da sabedoria, da experiência, das histórias de preferência que me induzissem medos! Não era por mal, digamos que uma tradição de quem está, para quem chega. Que fazer senão tentar concordar, ambientar-me, sorrir, nem que amarelo fosse!

Estamos a chegar, vês o arame? Uma cerca de arame farpado alongava-se contornando algumas tabancas, envolvendo a aldeia. Passado este “portão”, uma outra cerca limitando a área militar, construções de alvenaria, telhados de luzalite e zinco, desta vez com "porta de armas"! E tinha uma zona para içar a bandeira, parada e tudo! Parecia mesmo um quartel!

O 6º pelotão de Artilharia era constituído por três Obuses 105 (tecnologia avançada,começaram a ser fabricados em 1931!!!) colocados estrategicamente na periferia da cerca exterior, dezanove homens, dezasseis eram Guineenses.
O Faustino, um algarvio forte não gordo como me dizia, passava-me o testemunho. Acabava a comissão. No semblante denunciadores, a saturação, a ânsia do regresso. Como se impunha, para além das burocracias, havia que apresentar os homens. Pelotão formado, depois me apresentar, pedi um a um que dissesse o nome. Estão a ver a cena, não estão? Os meus ouvidos habituados a José, Manuel, António, Silva, confrontaram-se com Abdul, Malan, Adulai, Joãozinho, Jau, Baldé, Seidi, etc, etc. Quando quis demonstrar o quanto eram importantes para mim, depois de ouvidas estas duas pautas de estranhas notas, tentei dirigindo-me a cada um, identificá-los…tentei, disse. Ao Adulai chamei Adelaide, ao Abdul, Malan, e não sei porquê ao menos corpulento…Joãozinho! Fiasco, gargalhada geral. Decididamente frustrante!
Ao fim de algum tempo, aprenderia a reconhecer as pessoas, sua identificação. Na Guiné há uma panóplia de etnias, e só no meu pelotão havia Balantas, Fulas, Mandingas, cada uma com a sua carga cultural. Qualquer dia falo sobre esta coexistência nem sempre pacífica!

terça-feira, novembro 6

Album (parte dois)



Fomos “depositados” no GA7, (Grupo de Artilharia 7) sede coordenadora dos pelotões de Artilharia espalhados pela Guiné. Éramos meia dúzia.
Hora tardia, a recepção e apresentações hierárquicas ficariam para o dia seguinte.
De interesse imediato, arranjar algo refrescante que empurrasse o nó da garganta, a possível integração social, de preferência miliciana – o BAR!
Rostos, um mais duro que outros, tez sarracenas , conversas circunstanciais, um aglutinador comum, o álcool, maioritária a cerveja.
A um canto, uma mesa de “velhinhos”, muitas palavras sonoramente proferidas, pouca conversa. Engatilham as palavras, os palavrões, muitas gargalhadas, poucos risos, nenhum sorriso. Bebe-se e muito.
Não conheço ninguém, parece-me! Desfilando os olhos pelos rostos, há uma figura que me é familiar. O João!
Era do curso anterior ao meu, estivéramos em Vendas Novas os dois. Algarvio, de falar musicado, brincalhão, gémeo do Basílio que também estava na mesma especialidade. Fora mobilizado cerca de quatro meses antes. Um exemplo da desumanização de uma política de um regime. Como disse eram gémeos, o João e o Basílio. Meses antes, o Basílio adoeceu, e acabou por ir para o Hospital militar da Estrela. Faleceu vítima de uma leucemia. Para todos nós companheiros foi uma dor grande. Para os pais e para o João foi enorme. Três meses depois o velho carteiro ficou de novo só na aldeia. Notícias do filho João, uma deferência, um “privilégio” em primeira-mão, o correio. O seu agora único filho João fora mobilizado para a Guiné.
E ali estava ele, um arrastar das palavras, um olhar ausente. Abordei-o como bóia de salvação, perdido naquele mar de indiferenças. Estava bêbado! Abraçamo-nos, evocamos a nossa comunhão, em silenciosa cumplicidade, o Basílio ausente.
Estado quase normal diário, disseram-me. Estava irreconhecível, caustico, em permanente desafio de riscos. Doeu-me, certamente não era a melhor bóia de salvação que encontrara. Também se afundava, farrapo anunciado!

No dia seguinte, apresentei-me ao segundo comandante, como era rotina e estabelecido.
Lembrou-me ao que vinha, com voz pausada, informou-me que iria integrar o 6º pelotão, sitiado em Tite. Não me dizia absolutamente nada. Bom? Mau? O único lugar que sabia bom e que conhecia…era Lisboa, mas para aí não me mandavam!Deixei o gabinete, com o meu 1º acto em teatro de guerra, um "bater de pala" e calcanhares exemplares!

Para onde vais, perguntavam-me. Tite! Silêncios, sobrolhos carregados, meias palavras, insinuações, sorrisos enigmáticos, observações pertinentes conhecedoras, outras não, observações destituídas de crédito, decidi, para meu saneamento mental!

No outro dia, de novo em movimento, de novo conduzido! Atravessei o Geba numa lancha LDG (lancha de desembarque grande). Do outro lado do rio, frente a Bissau, Enxudé, cais beira-rio, posto avançado do batalhão de TITE.
Começava uma nova etapa, um ano de novos desafios, um presenciar de sobrevivências, vivências!

domingo, outubro 28

album (parte 1)

Relativamente baixo, o avião sobrevoou o território da Guiné, em rota para Bissalanca, o Aeroporto. Água, charcos, que mais tarde soube chamarem-se “bolanhas”, vegetação rasteira, algumas espessas matas verdes e múltiplos sinuosos cursos de água, em gigantesco serpentear, mais água, mais bolanhas. A superfície terrestre parecia-me escassa neste desfilar essencialmente líquido. Onde aterrar, o avião?
Estes pensamentos certamente sonoros, ecoaram no espaço e de imediato um colectivo esticar de pescoço, um querer ver mais além, de preferência mais que os outros; janelas pequenas para tantos olhos! Nada, ninguém se manifestava. Uma opinião colectiva denunciada pelo silêncio!
Finalmente Bissau! Aterragem normal, como aplauso, suspiros, uma troca de olhos resignada! A maior parte de nós vinha em comissão individual, que significa uma substituição de alguém que por força maior (normalmente morte ou ferimento grave) deixara de estar no activo. Também havia os outros que como eu estavam integrados sempre num sistema de rendição individual, uma vez que não pertencíamos a uma companhia ou batalhão.
Para que nos pudéssemos habituar, de boas vindas, calor, muito calor, uma muito irritante humidade pegajosa. Para aqui uns, outros para ali! Periquitos, piu, piu, piu... ecoava em "solidária" provocação – as boas vindas dos veteranos e menos veteranos mas que já se sentiam no direito de “praxar”!
Nas cabeças preenchidas por um oco imenso, nada se retém, nem a provocação! Os olhos denunciadores, tudo querem ver, os ouvidos captar. Onde me posso refugiar, quem me pode acudir, pensei. Olhando para os meus companheiros de viagem, os mais próximos, os mais solidários, podia ver como nos desenhos animados, balões sobre as cabeças com pensamentos díspares, exclamações, estrelas, mas todos com um só significado – Estamos feitos!
Sacos camuflados identificados, bagagens de recurso, às costas, mais que o equipamento, o peso do momento. Uma Berliet esperava para nos conduzir aos destinos imediatos. Mais de uma centena de vezes subira para uma. Que tão alta me pareceu esta! Que esforço para a subir! Sentia-me pequeno. Pequeno e esmagado, perdido. Será que com a viagem perdi a fala? O desconhecido tolhe-me os pensamentos, a articulação, as palavras saem como indispensáveis grunhidos monossilábicos. Na carroçaria, em bancos corridos, os corpos agitam-se, sacodem-se as mentes. Para o motorista, (militarmente falando, condutor) caminhos conhecidos estes que nos conduzem através dos campos e depois mais próximo de Bissau, estrada quase urbana. Acelerado, o camião ronca por entre alas de mangueiras enormes, militares fardados de camuflado, civis de coloridos adereços, copos negros seminus. Cidade! Se isto é a capital…de novo aquele aperto na garganta!

quarta-feira, outubro 24

album (parte zero)




Apertar os cintos! O DC6 roncando fez-se à pista e num esforço de hélices ensurdecedor começou a ensaiar o voo. Pouco passava da meia-noite.
Carregado de silêncios ébrios, uns mais que outros, os pensamentos voavam céleres, transponham a carlinga, ficavam em terra em memórias de afecto, aconchegados em abraços já saudosos . Ali só corpos, olhos fixos em nada, vermelhos, de choros de revolta contidos, fardas verdes, destino Guiné!
21 anos. Fora apanhado no fim do ano lectivo, o primeiro da Faculdade. A convocatória, embora não explícita, dizia que o meu contributo era essencial para o sucesso do triunfo das forças armadas, daí em vão o pedido de adiamento.
Os meus pais sentiram-se agradecidos, altamente prestigiados pelos filhos que tinham. Um em Angola, atirador, outro em Moçambique, minas e armadilhas e agora eu, artilheiro na Guiné. E isso podia acontecer, perguntam. E o que é que não podia, naquela altura?
Quando hoje vejo as chegadas ou partidas das tropas portuguesas para ou de um qualquer país, não me posso alhear do outro filme vivido, sentido, noutros tempos.
Que diferença!
Naquela altura, dizia-se que havia subornos para livrar da tropa. Hoje dizem que há subornos para ser incluído nos contingentes que vão em missão para o exterior.
Naquela altura, todos eram voluntários…à força. Todos não, porque os “papa comissões” do quadro até se moviam nos corredores do poder para acumular medalhas comemorativas de expedições…e riqueza!

Naquela altura as comissões rondavam os dois anos. Hoje ficam-se pelos seis meses!
Enfim, que negócio a guerra!
Escura a noite só iluminada pelo incandescente dos motores, que até abrandavam em pleno voo. - É assim mesmo, dizia-me o Sobral, sentado a meu lado. Fora voluntário aos 17 anos,na força aérea.Se ele dizia, talvez soubesse do que estava a falar. Ficava-me na dúvida mas uma força maior que a certeza dele levava-me a contabilizar as vezes que via as pás das hélices, através do vermelhão dos motores.Noite em branco, um torpor de corpo e espírito, dores nos músculos em contracção, preocupação da proximidade de dias incertos, ausência de referências do passado!
Manhã, finalmente! Oito horas levara o avião a percorrer a distância entre Lisboa e Cabo Verde. Escala técnica, apelidaram.
Um bafo, uma vaga de calor intenso quando abriram as portas!
Esticaram-se as pernas, os braços, procurou-se espreguiçar os olhos em vão, alimentou-se o negro da alma com o fumo de um cigarro.
Calor, uma arenosa claridade agressiva, que desconforta, garganta seca.
O primeiro contacto com a Coca-Cola de lata!
Ali também seria Portugal?

terça-feira, setembro 11

porque há memória!


Carrossel

Uma neblina permanente turva-me o olhar, um frio cortante invade-me a alma. Caminho, vagueio, em movimentos mecânicos, sem rumo, nem destino, sem querer. Caminho, caminho, alheio a tudo e a todos, marchando ao som dos meus próprios passos. O relógio marca-me os tempos das tarefas, e como robot, executo-as. Ainda me empenho, procuro a eficácia mas sem alegria. Sinto-me vazio, árido, animicamente enlutado.
Tal como actor de um carnaval de Veneza, assumo a máscara e movimento-me. Inexpressivo mas sempre procurando estar em cena. Alheio, deixo-me levar pelos aplausos ou pateadas. Não me impressiona o efeito. Neste momento é preciso e urgente estar em cena independentemente da impressão causada no público.
Somo horas, dias, e tudo é igual. A rotina domina-me e não há desejo de inovação que me estimule. Aguardo as circunstâncias e que elas me encaminhem para qualquer estado. Sem vontade crítica, executo, executo, não questiono , nem inovo.
Tempo, mais tempo, as horas passam-se e nem me importo se tarde ou cedo. Calcorreio um trajecto já traçado, e nem me interessa onde me conduz a rota. Avanço quando me ordenam, paro quando não tenho obrigatoriedade.
Onde pára a minha iniciativa, a entrega e o desejo da diferença?
Já não vale a pena! Dia após dia subjugam-me os ponteiros do relógio. Dia, noite, noite, dia, o carrossel rodopia, rodopia, ora alto, ora baixo e deixo-me levar pelos movimentos repetitivos que não conduzem a lado nenhum.
O rom-rom das máquinas sobrepõem-se à música em altos tons difundida, e não encontro razões para o deslumbramento das crianças empoleiradas nas girafas ou cavalinhos de madeira. É só um carrossel, uma giratória máquina estúpida, que roda, roda, sempre em movimentos repetitivos sem destino que não seja a paragem. Que me importa que ande ou pare! Sou um mero passageiro de um redondel sem finalidade. Até o homem que gere o carrossel pode abandonar os comandos, pois sabe que nunca ficará sem a sua máquina. Não há fuga para o carrossel.
Um vazio, um alheamento total. As pessoas, as circunstâncias, as pessoas, as pessoas, as pessoas!
Que futuro, que objectivos? Não há futuro quando não se vive o dia a dia em paz, ou o futuro é o dia a dia, o minuto que se vive.
Máscara misto de hipocrisia feita carnaval social, até quando serei capaz de a assumir?
O céu tem sempre a mesma cor, tal como o rosto e expressão daqueles que me rodeiam. Tela cinzenta, sem estrelas ou luares românticos, rostos de sorrisos que me incomodam por expressões de alegria ou felicidade que não sou capaz se assimilar.
Serei só eu o hipócrita ou a hipocrisia é um valor definitivamente assumido no mundo que me rodeia e eu ainda não o atingi em pleno?

quarta-feira, março 7

um pássaro especial


(parte segunda)


Um dia, talvez cerca de três meses depois, manhã cedo, olhamos estarrecidos. As penas das asas, penas grandes negras azeviche que foram, estavam brancas. Tivemos dificuldade em perceber se seriam mesmo brancas ou se por acaso algum pó as embranquecera! Não, eram, estavam genuinamente brancas.
E continuava triste.
E continuava quedo.
E continuava mudo.
Passaram alguns dias.
Numa noite, uma noite iluminada por Lua cheia, noite dentro, há quem diga que uma estrela cadente rasgara o céu. Diferente. Seria?
Em silêncio paz, um pássaro voava, libertara-se rumo ao infinito. Um rasto ténue soltava-se em partículas prateadas das extremidades brancas das asas. Só estas, brancas, se viam no índigo céu!
Há quem afirme que ecoara uma voz forte e suave – AL-FRE-DO! Ouviu-se. Um silabado assobio aveludado soltara-se!
A lua era alva, serena, sorridente. O apelo fora imenso, intenso.
Partira, em definitivo libertara-se.
Compreendi porque se fora.
Os amigos precisam de nós, querem-nos!
Há que chegar, há que partir.

segunda-feira, março 5

um pássaro especial

(Parte primeira)
O meu tio Alfredo era já um velho homem quando o conheci. Tio da minha mãe, meu tio-avô. Na casa dos oitenta, uma imensidão em anos, grande, como grandes são os homens aos olhos dos miúdos. Só por isso, porque em altura nem ao metro e setenta chegava.
Aos fins-de-semana, fui com os meus pais algumas vezes a casa de ti Alfredo. Casa térrea, com pátio nas traseiras, alguns canteiros, flores e uma pitangueira bem presente na minha memória. A gula, a sedução pelos pequenos frutos vermelho contraste no verde das folhas, levaram-me a trepá-la muitas vezes. Daquela vez foi diferente. Trepei, e rapidamente desci. Estatelei-me no chão, uma dor aguda no pulso, uma súbita vontade de vomitar! Recolhi-me ao velho Vauxhall, banco traseiro, a esquerda em afago da direita, pulso junto ao peito, esperando o regresso dos meus pais. No rosto, pálida vontade de novo trepar a pitangueira. Na boca, acre e amargo sabor do que fora um delicioso fruto tentação. A espera foi curta, o trajecto o Hospital, o diagnostico fractura do pulso.
No quintal, para além da vegetação, um melro-preto, em gaiola tipo mansão das gaiolas, várias portas, poleiros, comedores e bebedouros. Um melro-preto imponente, bico amarelo forte, irrequieto, com a particularidade de responder com assobio sincopado ao chamamento AL-FRE DO, ditado pelo dono! Engraçado!

O meu tio Alfredo, morreu subitamente. O melro veio para a minha casa. Entristeceu!
Estimulávamo-lo, quedou-se aconchegado ao aramado lateral!
Provocávamo-lo…”AL- FRE- DO”!Emudeceu.
Um dia,...

quarta-feira, fevereiro 21

em tempos...recordo-me



- Afasta-te F…pois isto não é contigo, gritou Malan, G3 apontada, olhar decidido!
Supostamente tinha sido acusado de ter tido um relacionamento com a mulher de um civil. Este, aproveitando um momento de descanso, uma reposição das horas perdidas no turno da noite, acercou-se, faca na mão, preparando-se para desferir um golpe certeiro no jovem militar.
Felizmente não dormia, descansava, quieto, olhos abertos. Viu-o aproximar-se, entendeu a intenção, tomou de um salto a arma e desatou a disparar.
Gerou-se enorme barafunda na tabanca. Gritos, correrias, tiros!
Olha, alguém se apressou a avisar-me, um soldado teu anda aos tiros…
- F…, ele vai desgraçar a vida, vê se o controlas, implorou-me um negro ainda jovem, irmão do injustiçado Malan, mesmo a meu lado
Olhei-lhe, arma apontada, nos olhos determinação. Senti a determinação. Parei, comecei a urdir um plano. Recuei.
Ouvi o tiro, o grito!
Ao meu lado contorcia-se de dor, perna ensanguentada deitado no pó solto do chão, o jovem irmão. Não conseguira captar a mensagem naqueles olhos intensamente brilhantes, tal como eu fizera, tentou acercar-se.
Acabara-se o carregador. Malan substituía-o apressado, nervosamente. Corri, abracei-o, tentei retirar-lhe a arma. Uma luta breve, uma coronhada que me abriu o sobrolho.Mas o objectivo fora conseguido. O Malan ou a sua cega revolta felizmente não abatera mortalmente ninguém. Fora desarmado.
Foi preso.
Uma noite, ataque intenso de morteiros. Os carcereiros procuraram abrigo. O Malan, com um pontapé derrubou a porta. Desapareceu na noite.
-F…, o seu soldado, o preso, desapareceu, fugiu, aproveitando o momento do ataque, vociferava Coronel Ferreira, ao telefone!
- Não fugiu não, comandante, desde o primeiro momento que está na sua secção de artilharia, no seu posto!
Voltou para a prisão, esperando transporte para Bissau, aguardando julgamento.
A partir desse momento, preso….com a porta aberta!
Uma questão de HONRA!
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