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Mas quem sou eu mesmo? Nem eu sei se calhar. Em busca, permanentemente em busca!

terça-feira, novembro 6

Album (parte dois)



Fomos “depositados” no GA7, (Grupo de Artilharia 7) sede coordenadora dos pelotões de Artilharia espalhados pela Guiné. Éramos meia dúzia.
Hora tardia, a recepção e apresentações hierárquicas ficariam para o dia seguinte.
De interesse imediato, arranjar algo refrescante que empurrasse o nó da garganta, a possível integração social, de preferência miliciana – o BAR!
Rostos, um mais duro que outros, tez sarracenas , conversas circunstanciais, um aglutinador comum, o álcool, maioritária a cerveja.
A um canto, uma mesa de “velhinhos”, muitas palavras sonoramente proferidas, pouca conversa. Engatilham as palavras, os palavrões, muitas gargalhadas, poucos risos, nenhum sorriso. Bebe-se e muito.
Não conheço ninguém, parece-me! Desfilando os olhos pelos rostos, há uma figura que me é familiar. O João!
Era do curso anterior ao meu, estivéramos em Vendas Novas os dois. Algarvio, de falar musicado, brincalhão, gémeo do Basílio que também estava na mesma especialidade. Fora mobilizado cerca de quatro meses antes. Um exemplo da desumanização de uma política de um regime. Como disse eram gémeos, o João e o Basílio. Meses antes, o Basílio adoeceu, e acabou por ir para o Hospital militar da Estrela. Faleceu vítima de uma leucemia. Para todos nós companheiros foi uma dor grande. Para os pais e para o João foi enorme. Três meses depois o velho carteiro ficou de novo só na aldeia. Notícias do filho João, uma deferência, um “privilégio” em primeira-mão, o correio. O seu agora único filho João fora mobilizado para a Guiné.
E ali estava ele, um arrastar das palavras, um olhar ausente. Abordei-o como bóia de salvação, perdido naquele mar de indiferenças. Estava bêbado! Abraçamo-nos, evocamos a nossa comunhão, em silenciosa cumplicidade, o Basílio ausente.
Estado quase normal diário, disseram-me. Estava irreconhecível, caustico, em permanente desafio de riscos. Doeu-me, certamente não era a melhor bóia de salvação que encontrara. Também se afundava, farrapo anunciado!

No dia seguinte, apresentei-me ao segundo comandante, como era rotina e estabelecido.
Lembrou-me ao que vinha, com voz pausada, informou-me que iria integrar o 6º pelotão, sitiado em Tite. Não me dizia absolutamente nada. Bom? Mau? O único lugar que sabia bom e que conhecia…era Lisboa, mas para aí não me mandavam!Deixei o gabinete, com o meu 1º acto em teatro de guerra, um "bater de pala" e calcanhares exemplares!

Para onde vais, perguntavam-me. Tite! Silêncios, sobrolhos carregados, meias palavras, insinuações, sorrisos enigmáticos, observações pertinentes conhecedoras, outras não, observações destituídas de crédito, decidi, para meu saneamento mental!

No outro dia, de novo em movimento, de novo conduzido! Atravessei o Geba numa lancha LDG (lancha de desembarque grande). Do outro lado do rio, frente a Bissau, Enxudé, cais beira-rio, posto avançado do batalhão de TITE.
Começava uma nova etapa, um ano de novos desafios, um presenciar de sobrevivências, vivências!

13 comentários:

SILÊNCIO CULPADO disse...

A luta pela sobrevivência, em teatro de guerra, deve ser terrível. É que não se trata apenas de manter o corpo vivo. É preciso que a mente aguente a pressão e é preciso que a sensibilidade perante o sofrimento alheio, como demonstras no caso do Basilio e do João, não dêem conta de ti. Porque na guerra tem que se ser frio e quando se cultiva a frieza tem-se dificuldade em integrar a humanidade, caso se regresse.

Silvia Madureira disse...

Fica-se fascinado, ao mesmo tempo temerário perante estas palavras. Procurar o desconhecido sempre foi algo aliciante para o ser humano...mas...quando a incerteza é tanta...há algo que dói e é bem cá dentro...

Fico na certeza que mais histórias de grande emotividade se seguirão.

um beijo

Tiago R Cardoso disse...

Gostei desta pequena lembrança de historia.

quintarantino disse...

Apreciei a singeleza como aborda um tema que ainda hoje causa mais polémica que análises racionais.

SEMPRE disse...

Muito terrível este quotidiano de uma guerra onde sempre e apenas se sobrevive, e onde as vivências que se observam mais não são que outras sobrevivências construídas na angústia, no medo, na desconfiança, na solidariedade dos aflitos e na vontade de acreditar que é possível ultrapassar tudo isto e ainda ser gente.

NÓMADA disse...

Quem passou por uma guerra viu serem reclassificados todos os seus valores e toda a sua forma de olhar o mundo.
Uma guerra pesa para além do acabar.
Gostei muito da forma como descreves e do realismo que imprimes a tudo o que dizes.

Maria Clarinda disse...

Hoje vim apenas agradecer-te a visita. adorei o que vi.As fotos maravilhosas , as palavras belas. Voltarei com mais calma.
Um jinho.

hala_kazam disse...

foi bom ler este album partilhado!


*beijo*

Anónimo disse...

Querido,

Agradeço-te o imenso carinho, viu?
Beijinhossssss

Alma Nova ® disse...

Quantas almas se perderam, nesses teatros longínquos, onde se chegava Pessoa e se partia transformado em Farrapos de Ser...

SILÊNCIO CULPADO disse...

Vim passar pela guerra para te trazer paz. E talvez solidariedade. E talvez vontade de lutar por idênticos ideais.

Rui disse...

Oceano de indiferenças.

Anónimo disse...

Conheço de perto este episódio do Basilio.
Fui o último furriel miliciano enfermeiro do GA7, onde cumpri 26 meses no CTIG.
Fui mobilizado com 18 meses de tropa, quando acabei a especialidade de enfermeiro.
Durante a especialidade, estive colocado em Medicina 3, do Hospital Militar da Estrela em Lisboa, donde sou oriundo.
Medicina 3, serviço complicado, onde assisti á morte de muitos militares, uns já em final de vida (combatentes de outras guerras), e os outros, jovens da minha idade.
O Basilio, porque era um individuo com quem facilmente se simpatizava, cativou-me em particular. Ficámos amigos, e para colmatar a sua solidão, fazia-lhe companhia nos termos mortos e levava-lhe revistas para se entreter.
Morreu com leucemia aguda...nos meus braços.
Passado tempos, e já como furriel enfermeiro no GA7, estava eu no bar de Sargentos, quando tive um dos grandes choques da minha vida.
Afigurou-se-me ter entrado pela porta o Basilio. Algúem me esclareceu quem era... o seu irmão gémeo, que cumprimentei, e expliquei comovido o acontecido.

Francisco Rogerio Borba

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