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Mas quem sou eu mesmo? Nem eu sei se calhar. Em busca, permanentemente em busca!

domingo, outubro 28

album (parte 1)

Relativamente baixo, o avião sobrevoou o território da Guiné, em rota para Bissalanca, o Aeroporto. Água, charcos, que mais tarde soube chamarem-se “bolanhas”, vegetação rasteira, algumas espessas matas verdes e múltiplos sinuosos cursos de água, em gigantesco serpentear, mais água, mais bolanhas. A superfície terrestre parecia-me escassa neste desfilar essencialmente líquido. Onde aterrar, o avião?
Estes pensamentos certamente sonoros, ecoaram no espaço e de imediato um colectivo esticar de pescoço, um querer ver mais além, de preferência mais que os outros; janelas pequenas para tantos olhos! Nada, ninguém se manifestava. Uma opinião colectiva denunciada pelo silêncio!
Finalmente Bissau! Aterragem normal, como aplauso, suspiros, uma troca de olhos resignada! A maior parte de nós vinha em comissão individual, que significa uma substituição de alguém que por força maior (normalmente morte ou ferimento grave) deixara de estar no activo. Também havia os outros que como eu estavam integrados sempre num sistema de rendição individual, uma vez que não pertencíamos a uma companhia ou batalhão.
Para que nos pudéssemos habituar, de boas vindas, calor, muito calor, uma muito irritante humidade pegajosa. Para aqui uns, outros para ali! Periquitos, piu, piu, piu... ecoava em "solidária" provocação – as boas vindas dos veteranos e menos veteranos mas que já se sentiam no direito de “praxar”!
Nas cabeças preenchidas por um oco imenso, nada se retém, nem a provocação! Os olhos denunciadores, tudo querem ver, os ouvidos captar. Onde me posso refugiar, quem me pode acudir, pensei. Olhando para os meus companheiros de viagem, os mais próximos, os mais solidários, podia ver como nos desenhos animados, balões sobre as cabeças com pensamentos díspares, exclamações, estrelas, mas todos com um só significado – Estamos feitos!
Sacos camuflados identificados, bagagens de recurso, às costas, mais que o equipamento, o peso do momento. Uma Berliet esperava para nos conduzir aos destinos imediatos. Mais de uma centena de vezes subira para uma. Que tão alta me pareceu esta! Que esforço para a subir! Sentia-me pequeno. Pequeno e esmagado, perdido. Será que com a viagem perdi a fala? O desconhecido tolhe-me os pensamentos, a articulação, as palavras saem como indispensáveis grunhidos monossilábicos. Na carroçaria, em bancos corridos, os corpos agitam-se, sacodem-se as mentes. Para o motorista, (militarmente falando, condutor) caminhos conhecidos estes que nos conduzem através dos campos e depois mais próximo de Bissau, estrada quase urbana. Acelerado, o camião ronca por entre alas de mangueiras enormes, militares fardados de camuflado, civis de coloridos adereços, copos negros seminus. Cidade! Se isto é a capital…de novo aquele aperto na garganta!

7 comentários:

Rui disse...

O Sérgio Godinho fala da guerra numa canção que se chama "Fotos do Fogo". Veio-me à ideia, durante a aterragem na Guiné.

Diz assim, a determinada altura:

Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
“às suas ordens, meu tenente!"
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato


Aposto que se via na alma.

Silvia Madureira disse...

Tens convite no meu blog. beijo

SEMPRE disse...

Gosto de partilhar este baú de recordações com alguém que esteve na guerra. As recordações da guerra são sempre mais pesadas, mesmo quando enfrentamos outras guerras, mesmo quando o tempo procura apaziguar as mágoas.
Um abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Às vezes dou por mim a pensar em todos os sulcos que uma guerra deve deixar no percurso de um homem. Uma guerra que me recorda um poema do maestro Belo Marques que aqui te vou deixar:
Enganaram-te meu filho tu não queiras/levar a dor ao peito de outras mães/em nome de rídiculas bandeiras/inglórias fortunas que não tens.
O que eu quero dizer é que a guerra e os seus interesses são exteriores aos participantes. Os senhores da guerra esses ficam nos gabinetes. E há uns sobreviventes, como tu, com sensibilidade e inteligência para nos contar e deixar registos de memória que nunca deviam ser esquecidos.
Um abraço.

Zé Miguel Gomes disse...

O impacto em mim foi tão grande, que de voluntário tive apenas uma semana...

Silvia Madureira disse...

bem...esse aperto na garganta tem o seu motivo e bem válido...o que virá a seguir? (pensavas tu).
Dureza é a palavra que melhor sintetiza estes momentos.

Continuo fascinada por aqueles tempos em que haviam madrinhas de guerra, corações despedaçados nas partidas...embora muitos morressem antes de terminar as suas histórias.

Fascina-me fardas e este mundo embora esteja tão longe dele...é engraçado!

beijo

Aninhas disse...

Passei aqui por acaso.
Não,não estive fisicamente nesta guerra. Travo agora guerras pessoais que não vêm ao caso.
No entanto sou filha da guerra.
Do pai ausente, lá longe, na África. Da mãe medrosa, contando história de arrepiar. Do aeroporto cheio com os soldados e as mães e as madrinhas e as namoradas e as irmãs, numa confusão de corpos e cheiros e imagens cinzentas. Estive lá, também, um dia, na chegada do avião que trazia o meu pai e levava aqueles outros. Era pequenina mas a imagem ficou gravada na memória, talvez pela falta de espaço e o transbordar de emoções que trespassava o ar.
Estive lá em cada carta que papai mandava ou em cada natal que papai não estava.
Estive lá anos mais tarde, quando papai, já muito velhinho, falou chocado, a propósito de um senhor que dizia na televisão que Portugal nunca usou Napalm.
Estive lá quando me apercebi que papai guardava memórias que eu queria escrever, mas que papai não conseguia contar.
Gostei de o conhecer.

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