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Mas quem sou eu mesmo? Nem eu sei se calhar. Em busca, permanentemente em busca!

domingo, novembro 25

album (parte quatro)

Diziam que uma comissão de serviço só estava pronta para começar quando se estava no fim. Na verdade toda a preparação trazida da recruta e especialidade manifestava-se completamente desajustada. Aliás toda a Guerra é indutora de desajustes.

Estabelecido o primeiro contacto com aqueles que em princípio seriam meus companheiros directos por dois anos, encetei uma vida “social” desenvolvida na integração no seio militar europeu, o Batalhão de velhinhos.
Nomes? Não. Sobrenomes decididamente, algumas alcunhas ou até aqueles que assumiam o nome das suas terras de origem (o Fafe, o Elvas, etc.).
Talvez ancestral, estes métodos de aproximação, de inicio de relacionamento. Ou se fala de doenças, no caso presente de aventuras, ou e este nunca falhava, bebiam-se uns copos.
Um almoço abundantemente regado com um vinho tinto “marca branca” gentilmente transportado em bidões de 200 litros e de proveniência duvidosa, preparava a cerimónia de “aceitação”. Umas garrafas de Whisky como digestivo, conversas circunstanciais, um empurrar de copo após copo, como se não mais houvesse dia de amanhã. A praxe, uma outra. Fui aceite, consegui manter-me menos bêbado que alguns!
Prolongou-se. Foi um fim de dia em que rasgos de consciência me castigaram, por me sentir descontrolado, incapaz de, caso fosse preciso não dispor de todas as minhas capacidades.
Irresponsável, gritava-me! Creio que não há mais severo que o nosso próprio grito.
Tomei uma decisão. Não me embebedaria em horas de “serviço”. E o meu serviço acabava às quatro horas da manhã, começava ao escurecer.
Talvez uma semana depois de chegar a Tite, ainda procurava referências, identificações, pessoas, lugares, percebi a diferença de quem chega, o meu caso que quer compreender para agir, e aqueles que já “rodados” agiam mecanicamente porque não precisavam compreender.
Nessa noite cerca das três da manhã uma trovoada fenomenalmente sonora estourou mesmo em cima do frágil telhado. Ergui-me na cama, assustado aguardando não sei quê. Com ajuda de mais um flash seguido de trovão, olhei as outras camas iluminadas. Desertas!
Porta aberta, todo o pessoal num ápice se erguera e correra rumo ao abrigo!
Afinal fora uma trovoada, e se não fosse, disseram-me assim que regressaram…é pá, parecia uma canhoada…era mesmo como um RPG a rebentar… não podes esperar para ver…deixa estar que vais aprender…estes periquitos, rematavam com desdém!
Senti-me mal, diminuído, incapaz, triste. Era evidente…, porque não corri para o abrigo?
Afinal que linguagens eram aquelas?
Ai Lisboa, Lisboa!

6 comentários:

quintarantino disse...

Mais um fragmento interessante de um episódio recente da nossa História.

Tiago R Cardoso disse...

Estou a adorar este relembrar.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Nunca se diz da guerra o quanto baste. É necessário que se fale para que todos percebam o quanto cabimento tem, num cenário em que o indivíduo é empurrado para ele sem saber como nem porquê, aquele poema do maestro Belo Marques que registo aqui:
Enganaram-te meu filho, tu não queiras/levar a dor ao peito de outras mães/em nome de ridículas bandeiras/inglórias fortunas que não tens.
Abraço

SEMPRE disse...

Os textos de guerra são textos de vivências intensas e de testemunhos transformados em registos de memórias para que ninguém esqueça o que é uma guerra e o papel de figurante, subitamente investido em lutador, protagonizado pelo soldado indefeso a quem puseram uma arma nas mãos numa altura da vida em que acredita na construção e em que ainda sonha com uma vida preenchida e solidária.

RB disse...

ler-te é conhecer um pouco mais de nós...
aprendo todos os dias coisas novas.
è bom ler-te
beijo meu

Rui disse...

(...)
Ah! mas que ingrata ventura bem me posso queixar
Da pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida
(...)

Fausto - O Barco Vai de Saída

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