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Mas quem sou eu mesmo? Nem eu sei se calhar. Em busca, permanentemente em busca!

quarta-feira, outubro 24

album (parte zero)




Apertar os cintos! O DC6 roncando fez-se à pista e num esforço de hélices ensurdecedor começou a ensaiar o voo. Pouco passava da meia-noite.
Carregado de silêncios ébrios, uns mais que outros, os pensamentos voavam céleres, transponham a carlinga, ficavam em terra em memórias de afecto, aconchegados em abraços já saudosos . Ali só corpos, olhos fixos em nada, vermelhos, de choros de revolta contidos, fardas verdes, destino Guiné!
21 anos. Fora apanhado no fim do ano lectivo, o primeiro da Faculdade. A convocatória, embora não explícita, dizia que o meu contributo era essencial para o sucesso do triunfo das forças armadas, daí em vão o pedido de adiamento.
Os meus pais sentiram-se agradecidos, altamente prestigiados pelos filhos que tinham. Um em Angola, atirador, outro em Moçambique, minas e armadilhas e agora eu, artilheiro na Guiné. E isso podia acontecer, perguntam. E o que é que não podia, naquela altura?
Quando hoje vejo as chegadas ou partidas das tropas portuguesas para ou de um qualquer país, não me posso alhear do outro filme vivido, sentido, noutros tempos.
Que diferença!
Naquela altura, dizia-se que havia subornos para livrar da tropa. Hoje dizem que há subornos para ser incluído nos contingentes que vão em missão para o exterior.
Naquela altura, todos eram voluntários…à força. Todos não, porque os “papa comissões” do quadro até se moviam nos corredores do poder para acumular medalhas comemorativas de expedições…e riqueza!

Naquela altura as comissões rondavam os dois anos. Hoje ficam-se pelos seis meses!
Enfim, que negócio a guerra!
Escura a noite só iluminada pelo incandescente dos motores, que até abrandavam em pleno voo. - É assim mesmo, dizia-me o Sobral, sentado a meu lado. Fora voluntário aos 17 anos,na força aérea.Se ele dizia, talvez soubesse do que estava a falar. Ficava-me na dúvida mas uma força maior que a certeza dele levava-me a contabilizar as vezes que via as pás das hélices, através do vermelhão dos motores.Noite em branco, um torpor de corpo e espírito, dores nos músculos em contracção, preocupação da proximidade de dias incertos, ausência de referências do passado!
Manhã, finalmente! Oito horas levara o avião a percorrer a distância entre Lisboa e Cabo Verde. Escala técnica, apelidaram.
Um bafo, uma vaga de calor intenso quando abriram as portas!
Esticaram-se as pernas, os braços, procurou-se espreguiçar os olhos em vão, alimentou-se o negro da alma com o fumo de um cigarro.
Calor, uma arenosa claridade agressiva, que desconforta, garganta seca.
O primeiro contacto com a Coca-Cola de lata!
Ali também seria Portugal?

11 comentários:

Silvia Madureira disse...

Fiquei com vontade de conhecer a continuação da história. Sempre achei que nesse sentido os homens sofreram mais do que as mulheres no passado...sempre que havia guerra lá iam sem saber o futuro...se é que ainda haveria. Ouço histórias tão tristes de mortes...ouço algumas felizes (de casamentos com madrinhas de guerra), ouço tanto que até gostava de saber a tua continuação...Admiro essa época na qual havia uma coragem forçada...admiro todos aqueles que tiveram que ir...o meu pai não foi e até se livrou da tropa...não tem histórias.

um abraço

Anónimo disse...

vc escreve e a gente fica com vontade de ler...ler...ler...e é interessante quando fala da corrupção que muda o ponto,mas que ela continua a mesma...uma pena a gente ter de conviver com ela.obg pela visita.e vou ver se consigo vir por aqui mais vezes,pq é muito bom te ler.bjs esperanza

Anónimo disse...

vc escreve e a gente fica com vontade de ler...ler...ler...e é interessante quando fala da corrupção que muda o ponto,mas que ela continua a mesma...uma pena a gente ter de conviver com ela.obg pela visita.e vou ver se consigo vir por aqui mais vezes,pq é muito bom te ler.bjs esperanza

RDSER disse...

Que interessante...Gostei.
Volto para ler-te um poquito mais.
Bjim

Lu Soares disse...

Ola meu querido amigo!
Passei apenas para te deixar um beijo e um resto de semana excelente.
Voltarei para te ler como mereces...até lá.

BJ

Lu

Alma Nova ® disse...

E nestas já tão longínquas partidas deixava-se a alma em casa, presa aos afectos e continuava-se com a angústia a povoar o coração. Dias tristes esses...
Hoje já nada é assim e vendem-se, alma e afectos, por uns euros a mais na conta bancária. Onde será que iremos parar?!
Um abraço.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Percebo as cicatrizes que ficaram e a necessidade de ir ao baú das recordações exorcizar fantasmas. Porque quem vai à guerra nunca volta. Poderá voltar o corpo mas há muita cicatriz que fica escondida.
A guerra é um mal indecoroso que enche os bolsos e serve os interesses de alguns em troca do sofrimento dos outros.

Lu Soares disse...

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar


mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou

Beijo amigo

Lu

Artemísia disse...

Boa escrita... sensível e atenta.

Anónimo disse...

ficando à espera do resto :)
obrigada pela visita

já agora, além da escrita achei o nome desta "casa" genial :)
eu muitas vezes tenho vontade de dizer o mesmo :)

quintarantino disse...

Grato pelo comentário. Se puder, contudo, gostava que explicitasse melhor a parte final do mesmo.

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